25.5.04
momento breve
perante a impossibilidade de poder estar mais perto de ti...
refugio-me no gostinho ténue e levemente doce da por mim imaginada condição de possibilidade da tua presença... e no pouco que já me deste...
0 Comentários
perante a impossibilidade de poder estar mais perto de ti...
refugio-me no gostinho ténue e levemente doce da por mim imaginada condição de possibilidade da tua presença... e no pouco que já me deste...
17.5.04
questões amorosas
E caíram-me os olhos num livro que não era grande, adornado de miniaturas muito diferentes (felizmente!) do tema, flores, gavinhas, animais aos pares, alguma erva medicinal: o título era Speculum Amoris, de frei Máximo de Bolonha, e reproduzia citações de muitas outras obras, todas sobre o mal de amor. Como o leitor compreenderá, não era preciso mais para despertar a minha curiosidade doente. Assim, o próprio título bastou para reacender a minha mente, que desde manhã se tinha aquietado, excitando-a de novo com a imagem da rapariga.
Como durante todo o dia tinha rechaçado de mim os pensamentos matinais, dizendo-me que não eram de um noviço são e equilibrado, e como, por outro lado, os eventos do dia tinham sido bastante ricos e intensos para me distraírem, os meus apetites tinham-se aquietado, de modo que julgava então ter-me libertado daquilo que não tinha sido mais do que uma inquietação passageira. Bastou, porém, a vista daquele livro para me fazer dizer «de te fabula narratur» e para me descobrir mais doente de amor do que eu julgava. Aprendi depois que, ao ler livros de medicina, convencemo-nos sempre que sentimos as dores de que eles falam. Foi assim que, justamente, a leitura daquelas páginas, que espreitei à pressa com receio que Guilherme entrasse na sala e me perguntasse com que estava doutamente entretido, me fez convencer que eu sofria realmente daquela doença, cujos sintomas eram tão esplendidamente descritos que, se por um lado me preocupava achar-me doente, por outro alegrava-me ver pintada com tanta vivacidade a minha situação; fui-me convencendo de que, se acaso estava doente, a minha doença era, por assim dizer, normal, dado que tantos outros dela tinham sofrido do mesmo modo, e os autores citados pareciam ter-me tomado precisamente a mim como modelo das suas descrições.
Assim me comovi com as páginas de Ibn Hazm, que define o amor como uma doença rebelde, cuja cura reside em si própria, de modo que quem está doente não quer curar-se dela e quem está enfermo não deseja melhorar (e Deus sabe se não era verdade!). Dei-me conta porque de manhã era tão excitado por tudo o que via, porque parece que o amor entra através dos olhos, como também diz Basílio d’Ancira, e – sintoma inconfundível – quem está atacado por um tal mal manifesta uma excessiva alegria, enquanto deseja ao mesmo tempo ficar à parte e cultivar a solidão (como eu tinha feito naquela manhã), enquanto outros fenómenos que o acompanham são a inquietação violenta e o aturdimento que lhe tolhe as palavras… Assustei-me lendo que ao sincero amante, a quem se impede a vista do objecto amado, não pode senão sobrevir um estado de consumpção que muitas vezes chega a obriga-lo a recolher ao leito, e por vezes o mal ataca o cérebro, perde-se o tino e delira-se. Mas li com apreensão que, se o mal piorar, pode sobrevir a morte, e perguntei-me se a alegria que a rapariga me dava ao pensar nela valia este sacrifício supremo do corpo, à parte qualquer justa consideração sobre a saúde da alma.
(…)
Vim a saber também por uma frase de Santa Hildegarda que aquele humor melancólico que durante o dia tinha experimentado, e que atribuía a um doce sentimento de pena pela ausência da rapariga, se assemelha perigosamente ao sentimento que experimenta quem se desvia do estado harmónico e perfeito que o homem sente no paraíso, e que esta melancolia «nigra et amara» é produzida pelo sopro da serpente e pela sugestão do diabo. Ideia também partilhada por infiéis de igual sabedoria, porque me caíram debaixo dos olhos as linhas atribuídas a Abu Bakr-Muhammad Ibn Zaka-Riyya ar-Razi, que num Liber Continens identifica a melancolia amorosa com a licantropia, que leva quem dela é atingido a comportar-se como um lobo. (…)
Não tive enfim mais dúvidas sobre a gravidade do meu estado quando li citações do grande Avicena, onde o amor é definido como um pensamento assíduo, de natureza melancólica, que nasce por força de pensar e repensar nas feições, nos gestos ou nos hábitos de uma pessoa do sexo oposto: ele não nasce como doença mas em doença se transforma quando, não sendo satisfeito, se torna obsessivo, e como consequência tem-se um movimento contínuo das pálpebras, uma respiração irregular, ora se ri ora se chora, e o pulso bate. Avicena aconselhava um método infalível já proposto por Galeno para descobrir de quem uma pessoa está enamorada: segurar o pulso do doente e pronunciar muitos nomes de pessoas de outro sexo, até se perceber a que nome o ritmo do pulso se acelera: e eu temia que de repente entrasse o meu mestre e me agarrasse o braço e espiasse na pulsação das minhas veias o meu segredo, do que muito me teria envergonhado… Ai de mim, Avicena sugeria, como remédio, unir os dois amantes no matrimónio, e o mal seria curado. Era bem verdade que era um infiel, embora avisado, porque não tinha em conta a condição de um noviço beneditino, condenado portanto a jamais curar – ou melhor, consagrado, por sua escolha, ou por prudente escolha dos seus pais, a jamais adoecer. Felizmente, Avicena, embora não pensando na ordem clunicense, considerava o caso dos amantes que não se podem unir, e aconselhava como cura radical os banhos quentes. Mas depois li também que, sempre segundo Avicena, havia ainda outros meios: por exemplo, recorrer à assistência de mulheres velhas e experientes que passam o tempo a denegrir a amada – e parece que as mulheres velhas são mais experientes que os homens nesta tarefa. Talvez fosse essa a solução, mas mulheres velhas na abadia não as podia encontrar (nem jovens, na verdade), e, portanto, deveria pedir a algum monge que me falasse mal da rapariga, mas a quem? E, depois, podia um monge conhecer bem as mulheres como as conhecia uma mulher velha e bisbilhoteira? A última solução sugerida pelo sarraceno era francamente impúdica, porque postulava que se fizesse unir o amante infeliz com muitas escravas, coisa bastante inconveniente para um monge. Enfim, dizia para comigo, como pode curar mal de amor um jovem monge, não há realmente salvação para ele? Deveria recorrer a Severino e às suas ervas? De facto encontrei um excerto de Arnaldo de Villanova, autor que já tinha ouvido citar com muita consideração a Guilherme, o qual fazia nascer o mal de amor de uma abundância de humores e de pneuma, isto é, dado que o sangue (que produz o sémen gerador), crescendo por excesso, provoca excesso de sémen, uma «complexio venérea», e um intenso desejo de união entre homem e mulher. (…) A cura sugerida por Arnaldo consistia em procurar perder a confiança e a esperança de alcançar o objecto amado, de modo que o pensamento se afastasse dele.
Mas então estou curado, ou em vias de cura, disse para comigo, porque tenho pouca ou nenhuma esperança de voltar a ver o objecto dos meus pensamentos, e, se o visse, de o alcançar, e, se o alcançasse, de possui-lo de novo, e se o voltasse a possuir, de o conservar junto de mim, tanto por causa do meu estado monacal como dos deveres que me são impostos pela categoria da minha família… Estou salvo, disse para comigo, fechei o fascículo e recompus-me, precisamente no momento em que Guilherme entrava na sala. Continuei com ele a viagem através do labirinto já desvendado e de momento esqueci a minha obsessão.
Umberto Eco - O Nome da Rosa
Sempre apreciei histórias de amores difíceis, ou impossíveis... Há qualquer coisa nestas histórias que me faz ter alguma simpatia por elas...
0 Comentários
E caíram-me os olhos num livro que não era grande, adornado de miniaturas muito diferentes (felizmente!) do tema, flores, gavinhas, animais aos pares, alguma erva medicinal: o título era Speculum Amoris, de frei Máximo de Bolonha, e reproduzia citações de muitas outras obras, todas sobre o mal de amor. Como o leitor compreenderá, não era preciso mais para despertar a minha curiosidade doente. Assim, o próprio título bastou para reacender a minha mente, que desde manhã se tinha aquietado, excitando-a de novo com a imagem da rapariga.
Como durante todo o dia tinha rechaçado de mim os pensamentos matinais, dizendo-me que não eram de um noviço são e equilibrado, e como, por outro lado, os eventos do dia tinham sido bastante ricos e intensos para me distraírem, os meus apetites tinham-se aquietado, de modo que julgava então ter-me libertado daquilo que não tinha sido mais do que uma inquietação passageira. Bastou, porém, a vista daquele livro para me fazer dizer «de te fabula narratur» e para me descobrir mais doente de amor do que eu julgava. Aprendi depois que, ao ler livros de medicina, convencemo-nos sempre que sentimos as dores de que eles falam. Foi assim que, justamente, a leitura daquelas páginas, que espreitei à pressa com receio que Guilherme entrasse na sala e me perguntasse com que estava doutamente entretido, me fez convencer que eu sofria realmente daquela doença, cujos sintomas eram tão esplendidamente descritos que, se por um lado me preocupava achar-me doente, por outro alegrava-me ver pintada com tanta vivacidade a minha situação; fui-me convencendo de que, se acaso estava doente, a minha doença era, por assim dizer, normal, dado que tantos outros dela tinham sofrido do mesmo modo, e os autores citados pareciam ter-me tomado precisamente a mim como modelo das suas descrições.
Assim me comovi com as páginas de Ibn Hazm, que define o amor como uma doença rebelde, cuja cura reside em si própria, de modo que quem está doente não quer curar-se dela e quem está enfermo não deseja melhorar (e Deus sabe se não era verdade!). Dei-me conta porque de manhã era tão excitado por tudo o que via, porque parece que o amor entra através dos olhos, como também diz Basílio d’Ancira, e – sintoma inconfundível – quem está atacado por um tal mal manifesta uma excessiva alegria, enquanto deseja ao mesmo tempo ficar à parte e cultivar a solidão (como eu tinha feito naquela manhã), enquanto outros fenómenos que o acompanham são a inquietação violenta e o aturdimento que lhe tolhe as palavras… Assustei-me lendo que ao sincero amante, a quem se impede a vista do objecto amado, não pode senão sobrevir um estado de consumpção que muitas vezes chega a obriga-lo a recolher ao leito, e por vezes o mal ataca o cérebro, perde-se o tino e delira-se. Mas li com apreensão que, se o mal piorar, pode sobrevir a morte, e perguntei-me se a alegria que a rapariga me dava ao pensar nela valia este sacrifício supremo do corpo, à parte qualquer justa consideração sobre a saúde da alma.
(…)
Vim a saber também por uma frase de Santa Hildegarda que aquele humor melancólico que durante o dia tinha experimentado, e que atribuía a um doce sentimento de pena pela ausência da rapariga, se assemelha perigosamente ao sentimento que experimenta quem se desvia do estado harmónico e perfeito que o homem sente no paraíso, e que esta melancolia «nigra et amara» é produzida pelo sopro da serpente e pela sugestão do diabo. Ideia também partilhada por infiéis de igual sabedoria, porque me caíram debaixo dos olhos as linhas atribuídas a Abu Bakr-Muhammad Ibn Zaka-Riyya ar-Razi, que num Liber Continens identifica a melancolia amorosa com a licantropia, que leva quem dela é atingido a comportar-se como um lobo. (…)
Não tive enfim mais dúvidas sobre a gravidade do meu estado quando li citações do grande Avicena, onde o amor é definido como um pensamento assíduo, de natureza melancólica, que nasce por força de pensar e repensar nas feições, nos gestos ou nos hábitos de uma pessoa do sexo oposto: ele não nasce como doença mas em doença se transforma quando, não sendo satisfeito, se torna obsessivo, e como consequência tem-se um movimento contínuo das pálpebras, uma respiração irregular, ora se ri ora se chora, e o pulso bate. Avicena aconselhava um método infalível já proposto por Galeno para descobrir de quem uma pessoa está enamorada: segurar o pulso do doente e pronunciar muitos nomes de pessoas de outro sexo, até se perceber a que nome o ritmo do pulso se acelera: e eu temia que de repente entrasse o meu mestre e me agarrasse o braço e espiasse na pulsação das minhas veias o meu segredo, do que muito me teria envergonhado… Ai de mim, Avicena sugeria, como remédio, unir os dois amantes no matrimónio, e o mal seria curado. Era bem verdade que era um infiel, embora avisado, porque não tinha em conta a condição de um noviço beneditino, condenado portanto a jamais curar – ou melhor, consagrado, por sua escolha, ou por prudente escolha dos seus pais, a jamais adoecer. Felizmente, Avicena, embora não pensando na ordem clunicense, considerava o caso dos amantes que não se podem unir, e aconselhava como cura radical os banhos quentes. Mas depois li também que, sempre segundo Avicena, havia ainda outros meios: por exemplo, recorrer à assistência de mulheres velhas e experientes que passam o tempo a denegrir a amada – e parece que as mulheres velhas são mais experientes que os homens nesta tarefa. Talvez fosse essa a solução, mas mulheres velhas na abadia não as podia encontrar (nem jovens, na verdade), e, portanto, deveria pedir a algum monge que me falasse mal da rapariga, mas a quem? E, depois, podia um monge conhecer bem as mulheres como as conhecia uma mulher velha e bisbilhoteira? A última solução sugerida pelo sarraceno era francamente impúdica, porque postulava que se fizesse unir o amante infeliz com muitas escravas, coisa bastante inconveniente para um monge. Enfim, dizia para comigo, como pode curar mal de amor um jovem monge, não há realmente salvação para ele? Deveria recorrer a Severino e às suas ervas? De facto encontrei um excerto de Arnaldo de Villanova, autor que já tinha ouvido citar com muita consideração a Guilherme, o qual fazia nascer o mal de amor de uma abundância de humores e de pneuma, isto é, dado que o sangue (que produz o sémen gerador), crescendo por excesso, provoca excesso de sémen, uma «complexio venérea», e um intenso desejo de união entre homem e mulher. (…) A cura sugerida por Arnaldo consistia em procurar perder a confiança e a esperança de alcançar o objecto amado, de modo que o pensamento se afastasse dele.
Mas então estou curado, ou em vias de cura, disse para comigo, porque tenho pouca ou nenhuma esperança de voltar a ver o objecto dos meus pensamentos, e, se o visse, de o alcançar, e, se o alcançasse, de possui-lo de novo, e se o voltasse a possuir, de o conservar junto de mim, tanto por causa do meu estado monacal como dos deveres que me são impostos pela categoria da minha família… Estou salvo, disse para comigo, fechei o fascículo e recompus-me, precisamente no momento em que Guilherme entrava na sala. Continuei com ele a viagem através do labirinto já desvendado e de momento esqueci a minha obsessão.
Umberto Eco - O Nome da Rosa
Sempre apreciei histórias de amores difíceis, ou impossíveis... Há qualquer coisa nestas histórias que me faz ter alguma simpatia por elas...